Um Ano com Virginia Woolf #1 - A Viagem
Rio de Janeiro, 25 de Abril de 2020
Olá, como você está nesta quarentena?
Esta é a primeira newsletter de 2020. Eu tinha pensado que esse ano conseguiria me dedicar mais a escrever por aqui, mas avida acontece, atropela, distrai e quando me dei conta as férias mal tinham acabado e caímos em isolamento. Não consigo falar agora de como esse período está me afetando, talvez numa próxima.
Então vamos falar de Virginia Woolf?
Lembra do desafio de passar 2020 lendo algumas das obras dessa brilhante escritora? Pois bem, o ritmo de leitura está lento, mas caminhando. Não vamos desanimar! O primeiro título da lista que enviei na newsletter de Dezembro era A Viagem, publicado em 1915, eu utilizei a edição brasileira da editora Novo Século, e traduzida pela Lya Luft, de 2008.
Comecei por ele em Janeiro e terminei em Março este que é o primeiro romance de Virginia Woolf. A escolha de iniciar por aí não foi aleatória, apesar de alguns títulos da minha lista terem sido, mas me pareceu apropriado estrear o desafio #UmAnoComVirginiaWoolf com a obra inaugural dela.
O que posso dizer do que achei de A Viagem? Posso dizer que não é uma leitura óbvia. São quinhentas e cinquenta e duas páginas que contam uma viagem de navio de um pequeno grupo de ingleses, entre eles Rachel Vinrace e os Ambrose, desde o embarque na Inglaterra até o desembarque na América do Sul, e a estadia do grupo numa vila tropical, onde encontram outros viajantes. Woolf é detalhista nas descrições das paisagens, no movimento do navio, na luz do sol à tarde e assim por diante, e o cenário é realmente belíssimo.
Foto: acervo pessoal
Rachel Vinrace é a protagonista do romance. Ela é uma jovem pianista, ingênua, filha única de Willoughby, capitão e dono do Euphrosyne, navio que conduz a viagem de todos. Contudo, sua ingenuidade não faz dela uma mocinha de romances tradicionais, aquela que precisa encontrar o homem perfeito com quem irá se casar, diria que essa característica lhe permite ficar alheia a certas convenções sociais, como o casamento. Ela se estabelece temporariamente na vila com os tios Helen e Ridley Ambrose.
Há personagens que vêm e vão ao longo da jornada, alguns aparecem com mais frequência que outros, uns mais tagarelas ou esnobes que outros. Voltando a Rachel e o que se espera de uma jovem mulher burguesa é que se realize num bom casamento, no entanto, isto não está no seu horizonte, até que conhece Terence Hewet, um jovem escritor inglês, e se apaixonam. É uma relação delicada e bonita, ambos sabem que o casamento é um acordo que talvez não representasse o que gostariam. Talvez estes dois jovens no começo do século XX estejam apontando mudanças em como as relações possam se estabelecer.
Casamento, casamento, era a coisa certa a se fazer,a única coisa, a solução exigida para todos os que ela [Rachel] conhecia. [p. 269]
Rachel e Terence se descobrem apaixonados, declaram isso um para o outro mas são constantemente interrompidos pelos acidentes da vida. Acabar com as dúvidas entre eles se faz necessário, estabelecer os limites e que tipo de relação teriam. Eles contam tudo um para o outro, seus gostos, seus hábitos, rotina, percepções, desejos etc., e, por fim, decidem pelo futuro convencional, juntos, até que a tragédia os encontra.
Uma personagem muito interessante, na minha opinião, é Helen Ambrose. Ela se sente responsável por mostrar a Rachel a direção correta da vida adulta de uma jovem mulher.Helen acredita que Rachel precisa ser orientada para fazer boas escolhas e é, também, uma mulher que alcançou certo status que lhe permite não se preocupar em provar o tempo todo qualquer coisa a qualquer pessoa. Helen é, além disso, inteligente, divertida e dedicada, acredita que na ausência da mãe de Rachel alguém precisa orientá-la, já que o pai, obviamente, não se dedicaria a isso. Ela ocupa uma posição de respeito entre os demais, mas principalmente com Rachel. Helen é a primeira pessoa a perceber que a relação entre Terence e Rachel mudou, pergunta se estão felizes com isso e, como responsável por cuidar da jovem pianista ela sente que precisa alertá-los:
Pela escuridão ela olhava os dois [...]. O que tinha para dizer? [...]
-- Você percebe o que está fazendo? -- perguntou. -- Ela é jovem, vocês dois são jovens, e o casamento... -- ela interrompeu-se. Mas imploraram que continuasse, com tal seriedade nas vozes como se desejassem ardentemente seu conselho, e ela acrescentou:
-- Casamento! Bem, não é fácil. [p. 427]
Em Um Teto Todo Seu (1929), Virginia Woolf fala das dificuldades que as mulheres encontram para seguirem com suas carreiras literárias, bem como dos estereótipos encontrados na literatura feita por homens.Ela destaca que às mulheres são reservados certos papéis, considerados tão irrelevantes que desaparecem na história e nas histórias.
Será uma visão interessante, quando surgir, a dessas mulheres como elas são, mas precisamos esperar um pouco [...]. A maioria das mulheres não é prostituta nem cortesã; nem ficam sentadas apertando cachorros de estimação durante as tardes de verão. Mas, então, o que elas fazem? E me veio à mente uma daquelas ruas compridas em algum lugar ao sul do rio, cujas fileiras de casas são inumeravelmente populosas [...]. Todos os jantares foram preparados; os pratos e copos, lavados; as crianças enviadas para a escola e soltas no mundo. Disso tudo, nada permaneceu. Tudo se desvaneceu. Nem as biografias nem a história tem algo a dizer sobre isso. E os romances, mesmo sem querer, é inevitável que mintam. [Um Teto Todo Seu, pp.127-8].
Considerando esse texto fundamental de Woolf que é Um Teto Todo Seu, me parece particularmente interessante que este incomodo de Woolf apareça já no seu primeiro romance, em um diálogo entre Rachel e Terence, quando estão investigando os gostos e hábitos um do outro nas suas vidas em Londres. É pela boca de Terence que o embaraço com a invisibilidade das mulheres aparece. O interessante aqui é que ao jogar luz sobre tal questão, Woolf fala das coisas mais prosaicas que foram, e ainda são, negligenciadas numa certa literatura que tenta retratar mulheres. Ela parece colocar nesse trecho aquilo que gostaria de ler ou ter lido.
-- Por que lhe interessa? -- perguntou ela.
-- Em parte porque você é mulher -- respondeu ele.Quando disse isso, Rachel, que se esquecera de tudo, voltando a um estado infantil de interesse e prazer, perdeu sua liberdade e tornou-se consciente de si mesma. [...] Muitas vezes caminhei por essas ruas onde as pessoas vivem em casas enfileiradas, onde cada casa é exatamente igual à outra, e ficava imaginando o que será que as mulheres estariam fazendo lá dentro -- disse ele. -- Pense bem: estamos no começo do século XX, e até poucos anos atrás nenhuma mulher jamais se manifestava por si mesma nem dizia coisa alguma. E essa estranha vida não-representada continuava acontecendo ao fundo, há milhares de anos. Naturalmente sempre escrevemos sobre mulheres... insultando-as, adorando-as ou desdenhando delas; mas nada jamais veio das próprias mulheres. Acredito que ainda não sabemos nem ao menos como elas vivem, ou o que sentem, ou o que exatamente elas fazem. [p. 322]
No geral, não acho que seja um grande romance. É bem escrito, sem dúvida, e é uma história de amor que se mostra para além das promessas e idealizações de uma relação. Virginia Woolf traz a beleza em ser livre em uma parceria romântica. Rachel é ingênua e, talvez por isso, também seja livre. Desta maneira, ela e Terence começam a construir a relação que não precisa ser como a dos Ambrose,ou dos Dalloway, ou de tantos outros que encontram pelo caminho.
Ler A Viagem depois de já ter lido algo posterior de Virginia Woolf me causou certo estranhamento. Acredito que ali estão alguns dos elementos que serão a marca da escritora, e a vale a leitura para quem gosta de um bom romance e para quem quer conhecer todos os trabalhos dela.
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Até qualquer hora.
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Abraço,
Elaine.