Um ano com Virginia Woolf #10 - Orlando
Rio de Janeiro, 19 de março de 2021
Olá, como vocês estão?
Há pouco mais de um ano entrávamos em período de isolamento. Olhando agora parece que fui até otimista à época, pensei que em três ou quatro meses as coisas estariam voltando a ser como eram – se eram normais não pretendo discutir agora. Só me lembro de que tinha muitos planos, e fui vendo cada um deles ser esmigalhado. Não foi bom.
Quem recebe esses meus e-mails há mais tempo deve ter percebido como os envios ficaram muito menos frequentes, provavelmente porque eu não tinha muito o que dizer (bom, não que hoje em dia eu tenha, mas estou aprendendo a arte de compartilhar histórias).
Vi muitas pessoas comentando nas redes sociais sobre o que fizeram dias antes de começarem a se isolar em casa. Eu me lembro que fomos à feira, comemos pastel e bebemos caldo de cana (um clássico!), compramos frutas, legumes, verduras, temperos e umas mudinhas de ervas porque eu estava começando a gostar de plantas. De lá pra cá, aprendi a fazer adubo, identificar algumas pragas, adquirir mais plantas, e daquelas três mudas de ervas que comprei na feira em 14 de março de 2020, só a hortelã segue firme e forte.
Não gosto de falar da pandemia por aqui, tinha prometido para mim mesma (e acho que para vocês também) que este seria um lugar de conforto onde esse assunto não entraria, mas as marcas da passagem do tempo mexem com a gente. Acho que cansei nos últimos doze meses o que me cansaria em pelo menos cinco anos de existência. E quantas lembranças tristes me trazem o dia 14 de março!
Foto: acervo pessoal
Esses pensamentos acabam se relacionando com nossas leituras, né? Fiquei um tempo pensando no que poderia falar sobre Orlando, uma das obras mais famosas de Virginia Woolf, e a coisa que mais me chamou a atenção é como a personagem vive cada período. Quatro séculos se passam e Orlando está lá vivendo cada um deles, seja como homem, seja como mulher.
Em seu diário sobre esta ideia a autora escreve:
Eu deveria tentar fazer uma mesa de trabalho, tendo feito meu último artigo para o Tribune, e agora estou livre novamente. E instantaneamente os dispositivos excitantes usuais entram em minha mente: uma biografia começando no ano de 1500 e continuando até os dias atuais, chamada Orlando: Vita; apenas com a mudança de um sexo para outro. (5 de outubro de 1927)
A ideia estava pronta, e Virginia Woolf pôs-se a realizá-la. Inicialmente ela incluiu no título Vita porque era também uma declaração de amor, a Vita Sackville-West (poeta, 1892 - 1962). Vita vinha de uma família da aristocracia inglesa, assim como Orlando e, como muitas mulheres daquele tempo, não tinha direito a herdar a propriedade da família.
Ao mesmo tempo em que é a mais longa e encantadora carta de amor escrita pela literatura – segundo Nigel Nicholson, filho de Vita – Orlando é também uma paródia dos costumes da época, do que persistia do período elisabetano, do apego às tradições.
A umidade começou a penetrar em todas as casas – a umidade, que é o mais insidioso dos inimigos, pois, enquanto o sol pode ser obstruído por venezianas a geada combatida pelo fogo, a umidade se insinua sub-repticiamente durante nosso sono. A umidade é silenciosa, imperceptível, onipresente. A umidade incha a madeira, cria uma crosta na chaleira, corrói o ferro, apodrece a pedra.
Em Orlando observamos a passagem de tempo no trânsito pelos séculos e na narração biográfica -- assunto de interesse de Virginia Woolf desde muito cedo. Ela conhece biografias através de seus estudos, do trabalho do pai, e do seu próprio, compreendia que se se tornasse uma escritora relevante estaria sujeita ela mesma a ser biografada [como de fato foi], mesmo sendo mulher.
Uma biografia é um olhar para o passado, nem sempre o nosso próprio. Observamos como as circunstâncias nos afetam, como reagimos e nos transformamos, mas será que algo ainda permanece? Orlando volta de uma longa viagem como mulher e ainda assim sua identidade não é questionada pelos empregados, talvez porque algumas coisas mudam, outras não.
Na biografia fictícia que Woolf escreve, Orlando é um jovem rapaz de 16 anos no século XVI e tem sua vida contada até o presente, até o ano de publicação do romance, 1928, com Orlando sendo uma mulher de 36 anos. É depois da mudança de sexo que publica um poema, ganha notoriedade e recebe a homenagem de ter sua vida contada por outra pessoa. Esta me parece, na verdade, uma daquelas críticas bem-humoradas de Woolf.
Nosso simples dever é relatar os fatos tal como são conhecidos, e deixar que o leitor os entenda como quiser.
Deixemos que os biólogos e psicólogos decidam. Para nós, basta expressar o simples fato de que Orlando foi homem até os trinta anos, quando se transformou na mulher que continua a ser desde então.
A passagem de tempo em Orlando vista sob a ótica dos gêneros mostra como "a diferença entre os sexos tem maior profundidade", pois características comumente atribuídas a um ou outro sexo se revezam na protagonista.
Às vezes, estamos tão envolvidos em uma situação que não vemos o tempo passar, e é um espanto quando alguém diz que horas são e saímos dessa espécie de transe. Acho que Orlando não se dá conta do quanto o tempo do calendário passou, mas acredito que ela saiba o quanto viveu, numa medida que é sua e não dos relógios.
Foi atingida dez vezes. Na verdade, eram dez horas da manhã. Do dia 11. Do ano de 1928. Era o momento presente. [...] Pode haver revelação mais terrível de que se saber no momento presente?
A verdade é que mais uma vez terminei um romance de Virginia Woolf pensando: não entendi nada. Tive até uma ressaca depois de ler Orlando e disse para mim mesma que não queria mais saber da autora. Na semana seguinte eu já começava a ler Noite e Dia, mas vá lá.
Acho que ainda é preciso um tempo para processar alguns dos textos de Virginia Woolf. Comecei a escrever sem saber o que dizer, e agora termino achando que ainda falta muito a dizer. Orlando é uma obra fantástica, daqueles livros que a gente volta depois de alguns anos.
É isso, o tomatinho* me avisa com sua campainha que o tempo acabou, agora vou fazer chá de hortelã, preparar o almoço, depois brincar e mais tarde leio mais Virginia Woolf para fugir das notícias alarmantes do dia (talvez nesta semana esteja particularmente mais difícil do que nas outras), vivendo mais um dia que parece se repetir.
Fiquem bem.
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*Técnica pomodoro: método de gerenciamento de tempo que divide o trabalho em períodos curtos separados por pequenos intervalos.
Orlando: uma biografia, Virginia Woolf. Tradução de Jorio Dauster. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2014.
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Até mais,
Elaine.