Um ano com Virginia Woolf #3 - Contos Completos parte 2
descrição: imagem com os dizeres: atrás da porta à frente de um retângulo azul e uma segunda linha onde está escrito: uma newsletter de Elaine Pinto
Olá,
esta é a segunda parte das minhas observações sobre os Contos Completos de Virginia Woolf, publicado pela Cosac Naify (2005) traduzida por Leonardo Fróes. Aqui destaco alguns contos do período que vai de 1922 até 1941.
Os contos do começo da década de 1920 são marcados pela presença do casal Clarissa e Richard Dalloway que, antes disso, ainda aparece no romance de estreia de Woolf, A Viagem (1915), e foi a leitura inaugural da série #UmAnoComVirginiaWoolf e você pode ler o que escrevi aqui. No romance, os Dalloway são passageiros - marcantes, eu diria - da embarcação Euphrosyne que sai de Londres com destino à América do Sul:
A verdade era que Mr. e Mrs. Dalloway viram-se largados em Lisboa. Haviam viajado pelo continente por algumas semanas, principalmente para ampliar a visão de Mr. Dalloway. Incapaz, por um desses acidentes da vida política,de servir ao seu país no Parlamento,Mr.Dalloway fazia o melhor que podia para servir fora do Parlamento. (p. 70)
Os Dalloway estão em sete das pequenas histórias de 1922 a 1925, protagonistas ou coadjuvantes, ou tendo sua casa como cenário para outras personagens, ora um ora o outro:
Mrs. Dalloway disse que ela mesma ia comprar as luvas. (Mrs. Dalloway em Bond Street, p. 213)
Ela subiu pela escada e assomando-lhe como convicção quando cumprimentou Clarissa Dalloway (O Vestido Novo, p. 241)
Ali em pé na sala de visitas de mrs. Dalloway. (Antepassados, p. 259)
Ao ver que mrs. Dalloway a espiava com ar reprovador lá do outro lado da sala, Lily Everit quase chegou a rezar para que ela não viesse incomodá-la. (A apresentação, p. 263)
Mrs. Dalloway apresentou-os, dizendo você vai gostar dele. (Juntos e à parte, p. 271)
Indo às pressas por Deans Yard essa tarde, Prickett Ellis deu de cara com Richard Dalloway. (O homem que amava sua espécie, p. 279)
Se bem que aqui,no jardim de Mrs. Dalloway em Westminster, a beleza nascida e criada na roça como ela era, presumivelmente a comovia pelo contraste. (Uma Recapitulação, p. 298)
Em Mrs. Dalloway em Bond Street (1923) nos reencontramos com Clarissa, que sai para comprar luvas para usar na sua festa. Passeamos por algumas ruas de Londres acompanhando-a e descobrindo suas impressões sobre as coisas. O conto foi publicado incompleto, segundo Woolf, na revista em que T. S. Eliot era editor, pois seria o primeiro capítulo do romance que retrata a vida de Clarissa, seus pensamentos e o mundo em que ela vive. O que eu gosto nele é como a gente conhece os detalhes dos lugares por onde ela passa através de seu olhar, acompanhando seus passos, observando as pessoas que ela encontra, as expressões que fazem, os pensamentos que se misturam com o que se vê, e isso é algo que aparece em outros textos de Virginia Woolf.
Clarissa sorriu complacentemente. De nada se esquecera a obesa senhora,mas essa não! diamantes e orquídeas a esta hora da manhã! Não! Não! Não! Quando fosse atravessar, o guarda,excelente, levantaria a mão. Mais um carro ia passando. Quanta falta de encanto! (p. 217)
Outro conto de destaque é O Vestido novo (1925) em que a inadequação de Mabel a acompanha o tempo todo durante uma festa na casa dos Dalloway, uma insegurança seja pelo que está vestindo seja pelo modo como se comporta. Os pensamentos dela diante daquela situação e como ela acredita que os outros a vêem dominam seus pensamentos e toda a história. É como o nosso próprio olhar nos momentos de insegurança, esse olhar que não é nos basta e então buscamos pela aprovação de outras. Porém, não a encontramos e nos vimos como um animal grotesco e nojento, um inseto que todos enxotam e ridicularizam.
Era a si mesma que assim via - e, sendo ela mosca,os outros eram borboletas,libélulas, belos insetos adejando, deslizando, dançando, enquanto ela apenas ela se arrastava para fora do pires. (p. 243)
Foto: Natural History Ensemble, no. 2 (1596–1610) de Anselmus Boëtius de Boodt. em Rijksmuseum, digitalizada por rawpixel.
Descrição: Desenhos coloridos de insetos como libélulas, grilo e mosca.
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Em Juntos e à parte (1944) temos um daqueles momentos em festas em que duas pessoas são apresentadas, têm uma conversa banal sobre a noite, sobre a lua, as cerejeiras (ou qualquer outra planta), descobrem uma coincidência de terem passado a juventude no mesmo lugar, a conversa flui, risos, encantamento, concordam entre si, o riso cessa, o silêncio constrange, o assunto desgasta, o interesse acaba e separam-se.
Ele sorriu; aceitou a frase; cruzou as pernas ao contrário. Ela fez seu papel; ele, o dele.E assim as coisas terminaram. veio logo sobre ambos essa paralisante cessação de sentimento, quando nada irrompe da mente, quando suas paredes parecem de ardósia; quando o vazio quase dói, e os olhos petrificados e fixos veem o mesmo ponto. (p. 277)
Deixando os Dalloway um pouco de lado, em A viúva e o papagaio: uma história verídica (1920) Mrs. Gage é uma idosa que um dia recebe a notícia da morte do irmão e que ela era sua herdeira. Animada, ela parte para outra cidade para tomar posse da casa e do dinheiro que lhe foram deixados, mas chegando lá se decepciona ao descobrir que o dinheiro não foi encontrado, a casa é velha e ela teria de vender o papagaio do irmão para conseguir o dinheiro para voltar para sua casa. É então que começa a saga de Mrs. Gage. Parece uma daquelas histórias em que a gente lê num jornal popular, ou uma história de alguma conhecida como a prima de uma amiga da irmã de uma vizinha, que a gente desconfia se realmente aconteceu, mas, no fim das contas, se diverte porque a história é bem contada.
Com a escuridão e a lama, ela havia se metido de fato numa grande enrascada. Não conseguindo nem mesmo enxergar o rio direito, era incapaz de dizer se já chegara ou não ao vau. Em parte alguma havia luzes visíveis (...). Tudo indicava que não havia nada a fazer, a não ser sentar e esperar pela manhã (...). Tão lamentável era seu estado, que de bom grado ela trocaria de lugar com uma das vacas do pasto (...). Nesse momento aconteceu uma coisa extraordinária. Um enorme clarão brilhou no céu,como uma tocha gigantesca,iluminando cada folha de grama e mostrando-lhe o ponto de passagem a menos de vinte metros dali. (p. 233)
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Continuando agora com os destaques do período de 1926 a 1941, acho que foi mais difícil fazer a seleção deste período para escrever aqui. As histórias são bem variadas: mulheres que se apaixonam, que se descobrem; os sons e sentidos da vida; os dias normais; a etiqueta, os desejos, as lembranças; nossos mundos particulares; o que deixamos para trás, como seguimos adiante. Dentre tantas dessas histórias destaquei quatro contos.
A dama no espelho: reflexo e reflexão (1929) é uma história que tem um espelho como observador. Ele observa a mulher que mora na casa e o entorno do cômodo onde fica. Ele vê o que ela mostra aos outros, o que deseja que os outros vejam, como os outros a vejam, ao mesmo tempo consegue enxergá-la mesmo quando ela deseja esconder suas imperfeições. Um conto fascinante. Um aviso para nós de que tudo o que vemos e conhecemos da casa, do corpo e das ideias de Isabella é o espelho que nos conta.
Ali estava a parede dura por trás. Ali estava a própria mulher, desnuda e em pé na luz impiedosa. E nada havia. Isabella estava completamente vazia. (p. 320)
Academia número 4 (1922), de Tarsila do Amaral. #descrição: mulher branca sentada nua e de costas num banco,cabelos na altura do pescoço. Do lado direito há um casaco azul pendurado, ao fundo uma pessoa sentada, olhando para a modelo, e pinta em uma tela, e mais ao fundo traços de pessoas que também parecem estar pintando a modelo.
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Em seguida temos Lappin e Lapinova (1939), recém casados, eles criam uma fantasia, um mundo divertido e estimulante. Um segredo entre eles. Amigos e familiares participam do mundo fantasioso de Lappin e Lapinova sem saber disso. O casal ri, se diverte, troca caretas e olhares confirmando o segredo que têm para não serem descobertos pelos outros. Até que um dia a fantasia acaba. Um conto muito bonito e muito trágico.
Era algo que os fazia sentir-se,mais ainda do que a maioria dos jovens casais, em aliança contra o restante do mundo.Não raro trocavam olhares irônicos quando as pessoas falavam de coelhos e matas e armadilhas e caça (...). Mas tudo isso era segredo - e isso é que era bom. Ninguém a não ser eles sabia que esse mundo existia. (p. 384)
Outro destaque é Cigana, a vira-lata (1940), um conto sobre cachorros. Uma história bem boba e divertida, contada por um casal que gesticula, imita e nos prende à narrativa. Nós, leitores, parecemos o outro casal, o que ouve a história, fazendo perguntas, nos inclinando para frente, curiosos sobre os detalhes, querendo saber o que acontece no final de tudo. Muito divertido.
Tom Bagot fez então uma pausa. Aparentemente ele chegara a uma parte de seu relato que tinha dificuldade em narrar. É difícil para um homem dizer por que se apaixonou por uma mulher, porém ainda mais difícil é explicar a paixão de um homem por uma cachorrinha vira-lata. (p. 401)
Por último, destaco O legado (1940), o conto que mais me impactou. Nele, conhecemos a vida de Angela Clandon através de seus diários lidos pelo viúvo, Gilbert Clandon, Angela morreu atropelada. Os diários para o marido são uma herança, assim como os presentes que deixa para amigas e funcionários. Através de Gilbert Clandon conhecemos os interesses, a rotina e as frustrações de Angela. Me parece uma daquelas histórias de Woolf sobre mulheres e suas vidas de donas de casa e o que elas têm para contar, mulheres que existem, desejam, pensam e acreditam em algo. Angela, como muitas mulheres dedicadas ao trabalho doméstico conta a sua história somente depois de morta, para nós e para Gilbert.
Ele agora podia vê-la sentada ao lado do velho sir Edward; e fazendo a conquista desse homem tão vivido e temível, que era seu líder. Leu bem rápido (...). Com o passar dos anos - e apanhou mais um volume na escrivaninha -, ele se absorvera cada vez mais em seu trabalho. E ela, é claro, foi ficando cada vez mais sozinha, visivelmente muito pesarosa por não terem tido filhos. (p. 415)
Essas são algumas pequenas histórias de Virginia Woolf que me chamaram a atenção. Depois de ler A Viagem, conhecer os contos me fez ver como Virginia Woolf é uma escritora que transita por muitos lugares, diversifica suas histórias, suas personagens, e consigo entender melhor porque ela é tão importante para literatura. Outra coisa que gostaria de destacar é o cuidado da edição com as notas fazendo referência aos diários e cartas de Virginia, um trabalho muito bem feito.
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Até a próxima,
Elaine.