Um ano com Virginia Woolf #4 - Um teto todo seu
descrição: imagem com os dizeres: atrás da porta à frente de um retângulo azul e uma segunda linha onde está escrito: uma newsletter de Elaine Pinto
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Rio de Janeiro, 30 de Outubro de 2020
Olá,
essa é mais uma newsletter do projeto #UmAnoComVirginiaWoolf, hoje falando de um texto fundamental que é Um teto todo seu (1928), o ensaio que Virginia Woolf apresenta em Newham College e é o primeiro texto de não-ficção da autora neste projeto da newsletter. Bom, mais ou menos, e aí já começo a entrar no assunto de hoje, porque o recurso utilizado por Virginia é exatamente o de uma história ficcional, como a própria se justifica:
Não preciso dizer que o que estou prestes a descrever não existe.
Porém, “a ficção precisa se ater aos fatos, e quanto mais verdadeiros os fatos, melhor a ficção - é o que dizem”, acrescenta adiante.
Virginia Woolf já é uma escritora renomada quando é convidada para falar sobre o tema “mulheres e ficção” na Universidade, e é desta apresentação que surge o texto Um teto todo seu.
E eu deveria estar revisando Lord Chesterfield neste momento, mas não estou. Minha mente está vagando sobre "Mulheres e Ficção", que vou ler em Newnham em Maio.
O trecho acima é do diário de Woolf, data de 18 de Fevereiro de 1928 e a tradução minha. Você pode ler a tradução completa no Medium. É interessante que nesse trecho do diário ela fala da questão do dinheiro, que é o que vai nortear sua apresentação.
Pode-se pensar em muitos aspectos sobre como estas duas palavras, “mulheres” e “ficção”, se relacionam. Woolf fala de como teve dificuldades em realizar a pesquisa, tentando ter acesso a espaços de uma universidade, lembrando que ela cria uma universidade fictícia, a Oxbridge. Depois, passa pela história da literatura inglesa, analisando como as personagens femininas foram (e são) descritas por homens; e como as escritoras foram proibidas, constrangidas e silenciadas ao longo da história. Mulheres escritoras, portanto, não fazem parte da História, e isso comprometeu a genialidade e a pluralidade de histórias. Esta situação se repete até mesmo depois de as mulheres terem conquistado alguns direitos. (Lembrando que os nossos direitos, os direitos das mulheres, estão sempre em risco).
Personagens mulheres aparecem com frequência na literatura, são protagonistas de romances, musas inspiradoras que levaram a poemas inesquecíveis. Mas, mulheres não podem ser escritoras? Onde estariam elas então? (Onde estamos nós?). Em quase todos os lugares, mas predominantemente em trabalhos mal remunerados, ou no lar trabalhando sem remuneração.
“Ficar em casa”, esta é a função da mulher, este é o trabalho (e eu acabei lembrando de alguns contos da própria Virginia Woolf que abordam diferentes aspectos desse trabalho.): cuidar e servir; existir em relação ao Outro, que é o masculino, o universal, o padrão etc. Assim é por alguma imposição tão antiga que passamos a acreditar, homens e mulheres, que esta é uma aptidão natural, que o trabalho doméstico é o que cabe a uma mulher, que é da nossa natureza limpar, cozinhar, cuidar. Cuidar para que os homens vivam aventuras, para que escrevam suas histórias (e até as nossas), para que criem coisas extraordinárias ou não.
descrição da imagem: o desenho de uma mulher usando um aspirador de pó com os seguintes dizeres ao lado: "eso que llaman amor es trabajo no pago", que significa:"isso que chamam de amor é trabalho não pago".
Logo no começo de sua leitura, Woolf lê a célebre sentença:
Tudo o que eu poderia fazer seria dar-lhes a minha opinião sob um ponto de vista mais singelo: uma mulher precisa ter dinheiro e um teto todo seu, um espaço próprio se quiser escrever ficção.
onde aponta que para uma mulher escrever é preciso um espaço próprio, um espaço onde somente a escritora possa estar, e, aí sim, desenvolver suas habilidades criativas, criar as histórias que lhe vierem à mente, explorar os mais variados gêneros.
Seguindo com sua ficção atenta aos fatos, Woolf nos conta a história de Judith Shakespeare, possível irmã do famoso dramaturgo inglês, e que teria sido tão genial quanto ele se tivesse tido as mesmas condições materiais, pois, enquanto ele trabalhava no teatro e conhecia o mundo, ela, a “talentosa e extraordinária irmã”, ficava em casa.
Ela era tão aventureira, tão imaginativa quanto ele. Mas ela não frequentou a escola. Não teve oportunidade de aprender gramática e lógica (...). Apanhava um livro de vez em quando, e lia algumas páginas. Mas logo seus pais surgiam e ordenavam que fosse coser as meias e não mexesse em livros e papéis.
É disso que se trata, das condições materiais necessárias para que uma mulher tenha a possibilidade de escrever. Porque uma mulher precisa de condições materiais dignas para explorar sua criatividade, para poder se aventurar a fazer coisas extraordinárias (ou não).Ter um teto sobre nossa cabeça ainda não é suficiente, pois, como Judith, na maioria das vezes temos de abrir mão do estudo para fazer o trabalho de servir, em que momento teremos tempo para escrever? Teremos tempo para escrever depois de servir a comida, depois de lavar a louça e a roupa, depois que a casa estiver limpa e organizada, e as crianças e idosos com suas necessidades atendidas?
Vale lembrar que Um teto todo seu foi escrito no final da década de 20 do século passado, e mesmo hoje, no século XXI, as questões que Woolf coloca voltam, perceber que ainda precisamos discutir isso é frustrante.
descrição da imagem: uma mulher idosa segurando um cartaz com os dizeres:”I can't believe I still have to protest this fucking shit”, o que significa: “eu não acredito que ainda tenho de protestar por essa merda”.
Através destas histórias, percebemos como ao longo do tempo fomos proibidas de realizar inúmeras coisas, como nossa autonomia é (ainda) vista como perigosa, e nosso desejo é cerceado. Resistimos, lutamos e seguimos. Seguimos com raiva e ironia, mudando o mundo escrevendo e fazendo muitas outras coisas extraordinárias, escrevendo e fazendo coisas ordinárias também.
Vai achando. Enquanto isso, continuamos escrevendo, pensando, existindo. Mais um livro. Mais outro. Nos diziam que não e escrevemos; nos empurravam para a miséria e escrevemos; diziam que este não era nosso lugar e escrevemos; nos dizem que não somos o suficiente (nem numerosas, nem boas), e escrevemos. Mais um livro. Mais um conto. Mais um poema. Aline Valek
O que me chama a atenção é como essa temática está presente na obra de Virginia Woolf - do que já li até agora. No primeiro romance, A Viagem, por exemplo, um dos personagens, um escritor, diz se interessar pela vida das mulheres donas de casa, das que vivem nos cortiços; e em alguns dos contos a questão também aparece, como crítica ao apagamento das mulheres na história ou sob a forma de contar ela mesma as histórias dessas mulheres em diferentes épocas, as histórias dessas mulheres esquecidas. Há também artigos sobre biografias e cartas de mulheres artistas que Woolf publicou. Ela busca por essas histórias porque elas não estão lá, foram apagadas, esquecidas, ninguém as contou antes, então, ela mesma decide contá-las, e as gerações seguintes de mulheres leitoras e escritoras agradecemos.
Para pensar mais um pouco a respeito da importância desse texto, podemos lembrar que em 2014 a escritora e ilustradora Joanna Walsh escreveu para o jornal The Guardian sobre o hábito de lermos apenas autores homens. Hábito este que é alimentado por jornais e editoras que privilegiam a publicação e divulgação de escritores homens (brancos) e transformam qualquer literatura feita por mulheres em um gênero específico, a tal da “literatura feminina”. O manifesto viralizou e desde então surgiram iniciativas para que mais escritoras fossem publicadas, traduzidas e lidas. Eu fiz uma avaliação na minha estante na época e percebi o quanto essa questão era negligenciada por mim, e desde então tenho lido principalmente obras de mulheres. Mas a solução para isso não depende só de mim, mas de iniciativas, como o Leia Mulheres, que mostra a qualidade e a diversidade da literatura feita por mulheres, assim como a diversidade do público leitor.
Devo dizer que foi bem difícil chegar a esse ponto de escrever sobre Um teto todo seu por tudo o que este ensaio representa. Fiquei pensando um bom tempo nas informações e pesquisas que fiz e o quanto estava exigindo de mim. Li, fiz anotações, marquei as citações, busquei outras referências sobre o texto; fiz rascunhos e nada, eu não chegava lá, não estava “vendo” o texto, ele não ganhava corpo, não ganhava forma; eu não sentia que estava chegando a algum lugar. Eu relia o que já tinha escrito e pensava: “não é por aí”, e voltava ao começo. O ensaio é fluido, divertido, certeiro em tantos pontos, nos leva a pensar em tantos aspectos e tantas questões, tem o ritmo de uma conversa de mesa de bar, como quando aquela amiga decide rebater todas as “piadas” machistas que os amigos homens querem defender.
A verdade é que uma pergunta vinha martelando na minha cabeça era: “como eu posso escrever sobre esse texto tão famoso e tão importante?”. Lembro de ter feito um texto que me deixou empolgada, e estava pronta para enviar, mas no dia seguinte, quando fui revisar e retocar achei tudo muito ruim, e comecei do zero de novo. Isso diz muito sobre a insegurança, eu sei, e acredito que pode ser que o ensaio de Virginia Woolf tenha falado comigo de maneira muito íntima, tocando em coisas pessoais. A dificuldade em escrever sobre este tema também é parte do processo, eu precisava esperar um pouco, deixar as ideias conversarem e seguir.
Agora está feito. Escrito, enviado, e talvez eu ainda fique pensando nele por um tempo, em todas as coisas que eu poderia escrever, em todas as justificativas que eu poderia me dar por não ter ficado como eu gostaria, mas é isso por hoje, no mais, fica a recomendação da leitura desse texto fundamental de uma escritora incrível que é a Virginia Woolf.
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Aqui estão algumas referências sobre “Um teto todo seu”:
Um teto todo seu, Virginia Woolf. Tradução de Bia Nunes de Sousa. Tordesilhas, 2014
“Temos poucas escritoras” por Aline Valek
“prioridades” por Stephanie Borges
Podcast Biblioteca de Minervas, episódio "um teto todo seu"
Podcast Uma leitura toda sua
Podcast do PPGLM: entrevista com Carolina Araújo - episódio |Quantas filósofas?
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Até mais, Elaine.